As escritoras Júlia Grilo e Mariana Carrara conversam sobre seus processos literários na Revista Deriva
"Mariana Salomão Carrara e eu um dia vamos publicar um romance epistolar feito de prints da DM do Instagram. Nosso lance é todo digital, a gente se conheceu via Facebook. Eu lembro que encontrei o seu blog e pensei: uau, que texto divertido, célere, fagulhoso!, e ela me tratou que nem se trata gente normal, com muita simpatia. Àquela altura eu ainda não havia publicado nada e Mariana, generosa e alegre, me recebeu com a mesma dignidade que os gregos recebiam estrangeiros nos primeiros cantos da Odisseia.
Quando lancei Cães, nem precisei me esforçar muito para que ela comprasse, ou lesse, ou compartilhasse as suas impressões de leitura comigo. Ela foi lá e fez tudo isso sozinha, o que é bastante estranho. É bastante estranho também que sejamos amigas, porque ela é muito bem sucedida e tem um emprego sério e fez Direito na USP! e já foi finalista do Jabuti.
Percebo que ela olha com zelo para a minha trajetória literária; às vezes eu vou a seu encontro para tentar entender alguma coisa que eu não sei (há muitas coisas que eu não sei) e ela me responde carinhosamente, feito uma irmã mais velha. Acho que é assim que a sua figura ecoa em mim, como a de uma irmã mais velha divertida. A gente ri muito. É sempre difícil explicar um fenômeno, reduzi-lo a suas partes, mas acho que Mariana e eu nos tornamos amigas porque rimos de coisas parecidas.
Júlia Grilo: Mari, não sei como funciona isso, mas eu resolvo muito problema narrativo enquanto durmo; às vezes levanto de manhã já com a solução pronta, na ponta dos meus dedos. Dizem que Kekulé, um químico alemão, descobriu a fórmula do benzeno em um sonho. Isso tudo soa bastante religioso para mim — e eu sou muito pouco religiosa. Não sei dizer bem o que é “inspiração”, só sei que as coisas acontecem ou não acontecem. O que é “inspiração”, dentro da sua experiência de escritora?
Mariana Salomão Carrara: O sono nunca me ajudou em nada. Se não fosse necessário, eu não dormiria, e aproveitaria esse terço de vida a mais. Minha relação com a inspiração ainda é muito imatura, é uma amiga que eu amo e fico ansiando que me visite de surpresa. Às vezes passo semanas sem conversar com ela, sem convidá-la, na espera preguiçosa de que ela apareça pela porta da minha sala enquanto eu olho distraída a janela, vai me abraçar e me derrubar por cima do computador e ficar fazendo carinho na minha cabeça enquanto eu escrevo.
E então chega a passar um mês, dois meses, sem notícias dela. Lembro que preciso mandar um convite, provocá-la, deixar a minha casa inteira pronta pra ela. Arrumo a música, pergunto o que é que ela tem, o que ela quer beber. Daí enfim passamos uma tarde juntas.
Tenho a impressão de que você gosta muito de estudar, adquirir conhecimentos técnicos, científicos, filosóficos, e então partir deles para uma ideia literária. O que te inspira mais, Julia, ler, ouvir, assistir a produções artísticas que alterem o seu estado de espírito, ou novos conhecimentos que alertam para diversas temáticas possíveis?
Júlia Grilo: Sou bastante insegura, Mari, morro de medo de falar do que não sei. Poucas coisas são tão bonitas quanto o som da minha boca em silêncio quando eu não tenho nada a dizer. A imagem d’eu de dentes abertos falando um monte de coisa que não se sustenta é ora assustadora, ora ridícula, e só de imaginá-la me dá calafrios! Me sinto muito vulnerável quando não posso justificar o que afirmo, porque é como se eu estivesse – por iniciativa própria! – me deixando ficar de camisola de bolinha no meio de um campo de batalha violento, sob o risco de ser perfurada a qualquer hora. Por isso me agarro à ciência. Acho que não confio tanto em mim, nas minhas ideias, porque nem sei se as minhas ideias podem ser mesmo só minhas. Há algo de positivo nisso: reconhecer que o que eu penso já foi pensado mais e melhor faz com que eu me sinta componente de um tecido extenso, contínuo, parte de um diálogo milenar. Faz com que eu me sinta menos só, também, e reveja a dureza das minhas pretensões. A dimensão coletiva do conhecimento humano é fascinante: “eba, fui convidada para a festinha da humanidade!”, e, embora a Academia seja um moinho (…a triturar nossos sonhos tão mesquinhos), a obrigação de referenciar sempre um outro alguém é também um exercício de humildade — de humilhação mesmo —, porque nos põe de mãos dadas.
Mas se eu gosto tanto de estudar eu já não sei. Sou uma péssima aluna, não consigo ficar muito tempo em sala de aula e me envergonho disso. Sinto inveja dos meus amigos disciplinados, acho a autodisciplina a coisa mais chique do mundo. Também sinto inveja dos amigos que estudam Filosofia, porque eles parecem saber de tudo — e é sempre a eles a quem recorro. Em Cães, como você descreveu, eu realmente fui do conhecimento “técnico” pro literário, e a princípio morri de medo do julgamento desses meus amigos filósofos, pois temia que a fragilidade daquilo que é artístico não conseguisse suportar o rigor do que é filosófico.
Eu fiquei muito mal — até deprimida — quando, nos primeiros semestres de graduação, me dei conta de que lia mais literatura do que artigos científicos. Me senti uma burra, uma inútil, incapaz de estar no mundo verdadeiro. Ainda não decidi onde enfiar a minha persona acadêmica; tenho a impressão triste de que ela irá se perder caso a arte não a aproveite. Acho ridícula a seção abandonada de teses e dissertações na biblioteca da faculdade. Ninguém lê aquilo. E eu ainda tenho que deixar que essas pessoas que escrevem para ninguém ler mandem em mim?
De qualquer forma, em geral, eu tenho mesmo estado entre o alerta temático e a espirituosidade artística, como você disse, mas não sei se ainda quero fazer isso: quero ser mais literária de agora em diante. Cães tem muito da minha graduação. Foi na graduação em Psicologia que eu pude ver a psicanálise de pertinho, enquanto um sistema teórico. Só que eu tenho a impressão de que conhecia a psicanálise desde muito antes de conhecê-la: é possível encontrá-la em todo o canto; Freud e Lacan impregnam nossos sentidos. Acha-se muito — muitíssimo — de fundamento psicanalítico nas artes, sobretudo na literatura e no cinema. Você acha que já deu de psicanálise na literatura, que deveria haver espaço para outras concepções de ser humano?
Mariana Salomão Carrara: Eu já brinquei explicitamente com a psicanálise, mesmo sem conhecê-la direito, no meu primeiro romance, escrito na adolescência. Hoje prefiro que a psicanálise encontre a literatura, e não o inverso. Que os personagens façam o que tenham de fazer sem que nem eles, nem o autor calculem o que está por trás, e só depois a psicanálise, e também as outras concepções, encontrem e impliquem ali tudo o que puderem.
Às vezes, a gente resiste a ver a literatura como “só” literatura, mesmo com toda a magnitude de tudo o que cabe nesse “só”. Clarice Lispector disse que “…o que eu terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, muito pouco”. Não me conformo que você se diminuía ao constatar que lia mais literatura que artigos científicos, a ficção, para mim, é o conteúdo mais completo e transformador, ainda mais se souber, como você disse, beber na dimensão coletiva do conhecimento humano. Se fosse possível, você gostaria de ser “só” escritora, Julia?
Júlia Grilo: Há dias em que penso que escrever é a única coisa que sei fazer. Às vezes eu me sinto meio estúpida por não ter conseguido gostar das coisas que fazem dinheiro. Nunca quis cursar Medicina, mas adoraria ter querido isso. Vez ou outra a minhoquinha bolsonarista faz buraco na minha cabeça e eu sou levada por uma onda de auto-ódio, detestando tudo o que sou, lamentando não ter conseguido aprender estequiometria e as outras “coisas importantes” na escola. Isso é curioso, porque acho a Filosofia o campo mais complexo do conhecimento humano, ao mesmo tempo em que às vezes eu a acho idiota, já que não faz dinheiro e não serve para nada. Mas a verdade é que as palavras servem para tudo, não é? Pensando como Clarice, a palavra é tão importante que se torna ridícula; é tão banal que basilar. Enxergar por este ângulo faz com que eu me sinta muito importante, quase uma engenheira.
Talvez eu já seja só escritora e faça outras coisas por acidente. Os meus momentos de maior sofrimento são aqueles em que a dor me parece inexprimível. Num ponto de vista mais pragmático, porém, se a escrita se tornasse a minha principal fonte de renda e eu tivesse que só escrever para pagar as contas, imagino que seria moída pelo ritmo de produção industrial, o que me parece insuportável. Odeio que me digam o que fazer.
Quanto às coisas que servem ou não servem, em Contra a interpretação, Susan Sontag diz que, para Platão e o seu dualismo, a arte não é especialmente útil, uma vez que a pintura de uma cama não serve para dormirmos nela. Alguns filósofos distinguem a arte e a ciência ao afirmarem que a segunda, diferentemente da primeira, tem um compromisso com a verdade. Caetano Veloso disse uma vez, numa entrevista, que “a arte é uma inutilidade essencial”, e, para mim, essa coisa de que as coisas devem servir a alguma coisa soa muito… liberalista. Gosto de estudar temas inúteis, são os meus prediletos (acho, inclusive, que a expectativa econômica por utilidade é um dos pilares da cruzada que o bolsonarismo traça contra as ciências humanas — muitas delas não servem para nada). Para você, Mari, a arte é inútil?
Mariana Salomão Carrara: Antes de aprender a ler e fazer contas, a criança aprende a cantar, dançar, encaixar as palavras nos ritmos, a se encantar com os desenhos, com as histórias dos desenhos. Acho que a arte tem uma função tão basilar, tão intrínseca à nossa existência e humanidade, que temos essa dificuldade em compreender sua utilidade. É tão útil quanto qualquer dos outros elementos que nos distinguem dos animais irracionais, e ao mesmo tempo fundamental para não nos deixar completamente distante deles.
Quando eu, menina, li pela primeira vez uma ficção que me fascinou, senti de imediato um grande fluxo de autoestima. Eu me senti muito especial por estar entre as pessoas que viveram a experiência de ler aquilo, e acho que até hoje esse é um dos sentimentos que me tomam nas boas leituras, além da sensação contínua de que preciso, eu também, fornecer esse sentimento aos outros, meus eventuais leitores. Esse pertencimento também nos lembra o quanto, na maior parte das vezes, o bolsonarismo não vivencia qualquer uma das nossas humanidades, e sempre que nós e esse “outro” tipo de ser humano — doloroso e inacreditável — coincidimos no amor por alguma experiência artística, lembramos o quanto essa nossa cisão é complexa.
Júlia Grilo: Minha nossa, Mari. Você me deixou sem fôlego. Gostei muito de “fluxo de autoestima” — nunca tinha pensado nesses termos e acho que eles dão conta de um sentimento que eu ainda não havia descrito. Não tive experiência semelhante à sua durante a infância, mas me senti a mulher mais gostosa do mundo quando eu li Dom Casmurro pela primeira vez. Senti que aquilo havia sido escrito para mim e que por causa disso eu teria que retribuir ao mundo a beleza daquela experiência (você e eu somos bem diferentes e eu fiquei surpresa com o quanto nos assemelhamos nisso!). Quando leio um texto muito bom, eu sinto necessidade de entrar na dança, dar minha contribuição para manter em pé essa brincadeira milenar de contar histórias. Retomo o que disse lá em cima sobre a dimensão coletiva do conhecimento humano. Não sou muito de falar em natureza, mas este sentimento de continuidade se revela muito natural, quase obrigatório. Será que é o que os darwinistas chamam de instinto?
Lembro que estava sentada num banquinho em frente à reitoria da UEFS quando terminei de ler Cem anos de solidão pela primeira vez, há quase cinco anos. Nem parece agora que foram cinco anos. Parece, na verdade, que eu nunca terminei de terminar de ler. Fazia sol para caramba e eu lembro também que havia florzinhas amarelas pelo chão. Ou será que eu inventei as florzinhas? Acho que eram tipo umas onze horas da manhã e eu fiquei estatelada, sem direção. Lacrimejei um pouco porque não sou de chorar fácil. E me senti suprema, absoluta.
Falando em bolsonarismo, tenho uma questão sincera e até um pouco afetiva: é possível ser feliz no Brasil? É possível ser feliz em meio ao horror? Me parece que essa questão desemboca em outros lugares, porque é como se eu te perguntasse: de quanta liberdade os seres humanos dispõem para se desfazerem de suas condições? Nossos contextos nos determinam?
Mariana Salomão Carrara: O Brasil atual seguramente cobriu tudo com um manto maior de tristeza, estamos fundamentalmente tristes. Rimos tristes, celebramos preocupados, torcemos desesperados, e quando voltarmos a dançar também seremos pesados. Quem não sofreu na própria casa esse desabamento, vive também culpado pela miséria que cresce em volta, então acho que existe sim uma espécie de felicidade que não vamos conhecer.
Não saberemos jamais como é viver num júbilo total, que permite pensar em coisas que não nos lembramos de pensar ou nem sabemos como são, uma ausência de medo. Isso interfere com certeza na arte que produzimos, mesmo quando escrevemos ou criamos a respeito de um divórcio dolorido, será um divórcio brasileiro, se falarmos da futura morte imaginária da nossa mãe, será uma morte brasileira. Se falarmos de uma manhã de sol com um grande livro e um chão de florinhas amarelas, será uma manhã brasileira. Esse manto que encobre tudo.
Júlia Grilo: Nossa, um grande livro! Nem sei o que é que faz um livro ficar grande. Uso aqui a voz ativa de propósito para destacar que o autor é geralmente um dos últimos responsáveis pelo “sucesso” (aspas, muitas aspas) do seu livro. A temporada de prêmios de 2021 está chegando ao fim agora e eu estou saindo dela de mãos vazias. Fiquei triste, até muito triste, com medo de ser engolida pela história, pedindo para que tivessem feito de mim grande, porque eu não sou capaz de me fazer sozinha. Para mim, que deixei de ser criança anteontem, é doloroso descobrir a literatura enquanto uma indústria que é industrial como qualquer outra. Mas também há algo de gozoso na rebeldia de cuspir no cânone, mijar no altar da igreja: quais são os clássicos que você detesta? E por quê? Eu começo: detesto Guerra e paz, detesto tanto que depois que li parei de ler prosa por um bom tempo. Vejo Guerra e paz como um excelente manual do que não deve ser feito num romance. Como anti-romance, ele é excelente. (Observação: talvez essa opinião mude nos próximos 20 anos — ou não).
Mariana Salomão Carrara: Não me dei bem com Joyce e F. Scott Fitzgerald. Ah, e tem Anna Kariênina que deixei pela metade para estudar pro vestibular tantos anos atrás, e nunca tive ânimo de voltar. Quanto aos prêmios, Júlia, também procurei seu nome e lamentei, e já estive muitos anos nesse mesmo lugar de listas sem mim, a sensação de que o livro passou, e não há nada que possamos dizer que de fato console, então ficamos com a verdade: cada prêmio é somente uma, ou algumas opiniões. Precisamos amar quando coincidirem com a nossa carreira, e aprender a não morrer junto com o livro que por instantes achamos que morreu, mas segue lá, igualzinho.
Júlia Grilo: Ano passado, seu romance Se deus me chamar não vou foi finalista do Jabuti, que é um prêmio grandeficador de livros, e você agora publicará pela Todavia, uma editora de grandes livros. Quais dicas você dá para autores iniciantes? Quais são os caminhos que devemos escolher para conseguirmos nos estabelecer em uma boa casa editorial?
Mariana Salomão Carrara: Eu sou particularmente tímida, não tenho facilidade de me aproximar dos editores nos eventos, tornar-me parte dos grupos e criar afinidades e aos poucos conhecer as pessoas que pudessem acolher meus livros, e sei que esse é um caminho possível. Acredito que optar inicialmente por uma editora que tenha obras no mesmo estilo, ainda que muito pequena e sem o poder de distribuição que o escritor desejaria, é um carinho necessário para o primeiro passo — pelo menos foi mais ou menos o que eu fiz. Na editora Nós, acabei pousando pela via de um pequeno concurso que a editora anunciou na FLIP, e foi assim que a Maria Carmem conseguiu lançar o seu livro rosa. Acompanhar chamadas de originais, concursos de inéditos, editais públicos, participar, se possível, de oficinas e cursos, pode ser, se não um caminho certeiro, pelo menos uma via agradável.
Júlia Grilo: Agora estamos chegando ao fim e, last but not least, eu quero te perguntar: onde estão os escritores negros, Mari?
Mariana Salomão Carrara: O pior de tudo é que, para além de estarem muitos ainda fora das prateleiras porque “não-descobertos”, é que há muitos “não-escrevendo”. Há muitos não-cineastas, não-desenhistas, desperdiçados por esse país e seu manto de tristeza."
Este texto foi extraído do site da Revista Deriva e foi publicado originalmente em 15 de janeiro de 2022. Pode ser acessado aqui.
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